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Estado interpreta lei com objetivo de arrecadar mais impostos, diz jurista

Eurico Marcos Diniz de Santi, jurista e professor de
direito na FGV
O Estado interpreta as leis tributárias da forma que deseja para legitimar a cobrança de impostos cada vez maiores. É o que diz o especialista em direito tributário Eurico Marcos Diniz de Santi no livro "Kafka, Alienação e Deformidades da Legalidade - Exercício do Controle Social Rumo à Cidadania Fiscal".

O livro conta sete dos mais importantes casos envolvendo tributação no Brasil, com os quais o professor de direito da FGV (Fundação Getúlio Vargas) teve contato ao trabalhar no Núcleo de Estudos Fiscais da instituição.

"O Estado pega uma lei, muda a interpretação dela, começa a lavrar autos de infração e as pessoas vão pagando as multas, sem que a lei necessariamente tenha sido modificada", diz.

O livro já está disponível no país todo e um evento na Biblioteca do Supremo Tribunal Federal, em 2 de fevereiro, vai marcar seu lançamento.

O UOL entrevistou Santi para entender quais são os efeitos de leis tributárias ambíguas e como o fim do sigilo fiscal das empresas, defendido por ele, pode ser uma solução.

No título, seu livro faz referência ao escritor tcheco Franz Kafka, cujas obras mostram personagens presos a situações absurdas, sem solução. De que maneira o contribuinte brasileiro se assemelha a um personagem de Kafka?

A conexão com o Kafka vem de um sentimento sobre como funciona a tributação no Brasil. Estudo o assunto há quase 30 anos e, na FGV, tive o desafio de tentar conectar o direito com a prática. O livro retrata a experiência de um personagem kafkiano que, no decorrer desse processo, ficou surpreso ao tomar consciência de que o direito tem um certo descomprometimento com a realidade.

O que eu encontrei na prática não foi a lei, mas deformidades da lei. Como no texto Diante da Lei [no romance "O Processo", de Kafka], você sabe que o lícito é algo bom e quer adentrar os seus domínios, mas você não tem como passar pela porta sozinho. Não basta a lei, existe sempre uma autoridade que precisa me autorizar a interpretá-la. É a minha história, mas também é a história do contribuinte, do advogado, do poder público.

Que efeito essa mudança na interpretação das leis tem sobre a cobrança de impostos?

Como professor e pesquisador, o tempo todo me perguntam, por exemplo, se uma coisa é constitucional ou inconstitucional. É uma pergunta surreal, porque a resposta depende de uma interpretação, é subjetiva. No caso retratado no capítulo quatro, que envolveu uma disputa de R$ 171 bilhões, a votação no STF (Supremo Tribunal Federal) empatou em cinco votos a cinco por quase dez anos.

O problema é que o próprio Estado se aproveita dessas zonas de incerteza. De um lado, o fisco reclama do contribuinte que tenta pagar menos imposto. De outro, em vez de alterar a lei, o fisco reinterpreta o direito para poder cobrar mais tributo.

Nos últimos 25 anos, partimos de uma carga tributária de 25% para atingir a carga atual de 36%. O que motivou, em grande parte, o aumento na arrecadação, foram interpretações sobre a mesma lei, e não mudanças nela.

Nosso desafio é que tanto o fisco quanto o contribuinte se esforcem para pagar o que é correto, ou, pelo menos, definir o que é correto.

No exemplo relatado no primeiro capítulo, uma empresa é multada em R$ 1 bilhão. Foi esse o caso?

Havia uma disputa entre Estados e municípios porque, segundo, a Constituição, os serviços são de competência dos municípios. Apenas serviços de comunicação e de transporte são responsabilidade dos Estados.

Quando surge a internet, os Estados começam a construir uma tese para que eles tributem a rede, e, então, passam a cobrar imposto dos provedores de acesso. Depois de quase sete anos de discussão na Justiça, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu que os provedores de internet são serviços e devem pagar imposto municipal, o ISS (Imposto Sobre Serviços). Poucos anos depois, um Estado criou uma outra tese, de que provedor de acesso é, sim, serviço, mas a propaganda nos sites é comunicação, e sobre ela deve ser cobrado ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Logo, sem nenhuma mudança legislativa, o Estado começa a lavrar autos de infração para as empresas.

Ou seja, o que você vê é um Estado que não está preocupado em se submeter ao direito, está preocupado apenas em arrecadar. Para isso, qualquer interpretação vale.

Quais os efeitos dessas mudanças na interpretação da lei para as empresas?

Eu tenho uma lei em conformidade com a Constituição. Em dado momento, o Estado interpreta essa lei em um sentido A. Quando ele perde no judiciário, começa a interpretar a mesma lei em um sentido B. Em outro momento, ele perde de novo e começa e interpretar a lei em um sentido C.

A questão é: como garantir que todos são iguais perante a lei, como diz a Constituição, se há várias interpretações possíveis da mesma legislação em função do tempo e para contribuintes diversos? Não há legalidade e nem igualdade.

Outro efeito é a criação de uma grande insegurança jurídica. A empresa vai estar sempre preocupada, sabendo que a interpretação de uma regra pode mudar a qualquer momento. A base fundamental do sistema tributário deveria ser a criação de segurança jurídica para um ambiente de negócios saudável.

É por causa dessa insegurança que há tantas disputas judiciais envolvendo pagamento de impostos no país?

A insegurança movimenta uma roda que eu chamo de indústria do contencioso pernicioso. O governo usa as autuações para arrecadar mais. O contribuinte, em face de tantas perspectivas interpretativas, busca os escritórios [de advocacia] para pagar menos, e os escritórios lucram. Isso fomenta uma indústria que, no Brasil, corresponde a 11% do PIB [Produto Interno Bruto], enquanto nos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] a proporção é de 0,2%.

O livro defende que o sigilo fiscal impede a divulgação de informações sobre como o governo interpreta a lei. Na prática, quais são as consequências desse sigilo?

A única forma de garantir a legalidade, a segurança jurídica e a igualdade é ter acesso à informação sobre todos os atos de aplicação da lei. Mas existe um artigo no código tributário que diz que as informações do contribuinte são sigilosas. Isso é uma falácia, um dogma.

Eu não quero saber a fórmula da Coca-Cola. Quero poder controlar o exercício do poder público e saber se ele está sendo usado  para atender a interesses patrimoniais, ou seja, para arrecadar mais tributos, e também se ele está sendo utilizado de forma corrupta. Quero saber como o fisco aplica a lei em casos concretos e se ele a interpreta da mesma forma para todo mundo. Só que, com essa informação, vem junto quanto o contribuinte paga de imposto.

Existe alguma forma de ter acesso à maneira como o Estado aplica as leis sem divulgar esses dados?

Sim. O fisco pode fornecer o auto de infração, que é o documento de aplicação concreta do direito, a que hoje não temos acesso. Basta pegar esse documento e tirar o nome da empresa, a sua razão social e todos os outros dados individuais. Nada disso interessa. O que interessa é saber qual critério legal o fisco está utilizando.

Se eu tiver isso vou poder comparar e ver que tem alguma coisa errada quando ele aplica a mesma lei a três empresas diferentes de três formas distintas.

Mas, em nome da defesa altruística do interesse do contribuinte, o Estado se nega a dar informação sobre o critério de interpretação da lei. O que está por trás de tudo isso é uma estrutura de poder que acaba utilizando a cumplicidade da lei, combinada com o sigilo, para poder criar uma deformação da legalidade para atender aos interesses do governante.

Seu livro cita um caso em que um contribuinte foi multado por ter "exercido de forma abusiva seu direito de auto-organizar-se", uma referência ao planejamento tributário.  Do ponto de vista jurídico, a prática é ilegal?

Ninguém paga tributo por amor, porque acha bonito ou porque tem fé no Estado. Pagamos tributo porque é lei. Quando existem duas interpretações possíveis para a mesma lei e o contribuinte usa a que é mais favorável ao interesse dele, ou seja, pagar menos imposto, ele está fazendo planejamento tributário. Está dentro da lei.

A beleza da questão está na seguinte contrapartida: a lei permite as duas interpretações, mas o governo diz que você tem dever moral de pagar mais. Mas o Estado não pode exigir comportamento moral, só comportamento legal. Ainda dentro da legalidade, o fisco utiliza a outra interpretação, que aumenta a carga tributária. Quer dizer que ele critica o contribuinte por ele buscar a interpretação para pagar menos, mas faz a mesma coisa para arrecadar mais. É o planejamento tributário ao contrário.

Aí vem a nossa enquadrada no Estado: para exigir comportamento moral do contribuinte, ele precisa ser moral, e não é. A forma de eliminar o planejamento tributário é eliminar a sua origem, que é a ambiguidade, a complexidade da legislação e o sigilo fiscal sobre os atos de aplicação do fisco.

FICHA TÉCNICA

Kafka, Alienação e Deformidades da Legalidade - Exercício do Controle Social Rumo à Cidadania Fiscal (2014)

Autor: Eurico Marcos Diniz de Santi

Editora: Fiscosoft/Thomson Reuters

Preço: R$ 300 (590 páginas)


Mariana Bomfim
Do UOL, em São Paulo

Fonte: OUL

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